segunda-feira, 26 de maio de 2008

Os Maias Excerto II

«Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes análises, apoderando-se da Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de todas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadáveres num anfiteatro; esses estilos novos, tão precisos e tão dúcteis, apanhando em flagrante a linha, a cor, a palpitação mesma da vida; tudo isso (que ele, na sua confusão mental, chamava a Ideia nova) caindo assim de chofre e escangalhando a catedral romântica, sob a qual tantos anos ele tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto literário da sua velhice. Ao princípio reagiu. «Para pôr um dique definitivo à torpe maré», como ele disse em plena Academia, escreveu dois folhetins cruéis; ninguém os leu; a «maré torpe» alastrou-se, mais profunda, mais larga. Então Alencar refugiou-se na moralidade como numa rocha sólida. O naturalismo, com as suas aluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social? Pois bem. Ele, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes. Então o poeta das Vozes da Aurora, que durante vinte anos, em cançoneta e ode, propusera comércios lúbricos a todas as damas da capital; então o romancista de Elvira que, em novela e drama, fizera a propaganda do amor ilegítimo, representando os deveres conjugais como montanhas-de tédio, dando a todos os maridos formas gordurosas e bestiais, e a todos os amantes a beleza, o esplendor e o génio dos antigos Apolos; então Tomás Alencar que (a acreditarem-se as confissões autobiográficas da Flôr de Martírio) passava ele próprio uma existência medonha de adultérios, lubricidades, orgias, entre veludos e vinhos de Chipre - de ora em diante austero, incorruptível, todo ele uma torre de pudicícia, passou a vigiar atentamente o jornal, o livro, o teatro. E mal lobrigava sintomas nascentes de realismo num beijo que estalava mais alto, numa brancura de saia que se arregaçava de mais - eis o nosso Alencar que soltava por sobre o país um grande grito de alarme, corria à pena, e as suas imprecações lembravam (a académicos fáceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porém, Alencar teve uma destas revelações que prostram os mais fortes; quanto mais ele denunciava um livro como imoral, mais o livro se vendia como agradável! O Universo pareceu-lhe coisa torpe, e o autor de Elvira encavacou... »

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